segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Sepúlveda

Tudo começou há cerca de um ano atrás.
E começou no Caramulo quando, por uma série de coincidências, "o velho que lia romandes de amor", foi para às mãos da Ana.
Seguiu então o seu rumo lógico, para a minha mesa de cabeceira.
Li-o depois, sem reconhecer nele o manifesto ecologista que anunciam aos sete ventos.
Encontrei, sobretudo, histórias de vida.
Histórias exemplares, cujas palavras de Sepúlveda libertaram da imensa clausura da selva.
Um pouco à semelhança dos romances de amor que o velho dentista levava para El Idilio.
Li depois o desencantado "o nome do toureiro" e o inconstante "encontro de amor num país em guerra".
Sobre o autor, confesso, não sabia mais do que as breves biografias de ocasião, impressas nas contracapas dos livros que li.
Mas a vida oferece-nos surpresas inauditas.
Ao escolher alguns livros para levar para férias furtei à mesa de cabeceira do meu pai "o General e o Juíz".
Abri-o pela primeira vez no avião a caminho da universal Rhodes.
E o que li emocionou-me de tal forma que não o voltei a abrir em público.
O sangrento e traiçoeiro golpe chileno de 73, descrito com crueza e objectividade acutilante.
As vidas sofridas, descritas com doces palavras por quem as viveu de perto.
A falta de diplomacia com que a vergonha da omissão chilena é narrada.
A prisão de Pinochet em Inglaterra, descrita com incontida alegria, com esperança na justiça.
A falta de decoro com que as instituições chilenas assumiram a defesa do carrasco que as espezinhou anos sem conta.
A desilusão e frustração pelo vergonhoso desfecho, pela chegada triunfante do senador vitalício ao seu Chile
Tudo isso, reunido em escassas páginas, num tempo em que tudo o que temos é informação acéfala, alinhada, escrava do politicamente correcto, devota do esquecimento, devolveu-me a certeza de que vale a pena tomar partido.
De que vale a pena assumir posições. Por muito desalinhadas que pareçam.
Não podia, pois, deixar escapar a oportunidade de conhecer pessoalmente Luis Sepúlveda, assistindo à apresentação do seu novo livro.
E conheci um homem que, apesar das agruras que passou, do exílio que sofreu, dos amigos que viu desaparecer, da omissão a que foi votado, mostra ainda um brilho nos olhos quando fala dos 2 minutos de filme que conseguiu resgatar de um cinema abandonado em Porvenir na Patagónia.
Que tomou orgulhosamente parte de uma bonita aventura que terminou mal, às mãos de uma vergonhosa corja de dementes.
Que privou com Allende, de quem fala com uma contagiante alegria, com uma infantil admiração.
Foi com emoção que o ouvi contar, desolado, que não conseguiu chegar a La Moneda nesse obscuro 11 de Setembro em que El Presidente pos fim à sua vida.
Mas foi sobretudo uma grande honra o que senti quando lhe apertei a mão, a esse homem que um dia será sepultado junto com os seus camaradas da escolta pessoal de Allende, junto a ele.

Pedro Rui







quarta-feira, 24 de setembro de 2008

a verdade é uma só


A verdade é uma só
O lobo é mesmo lobo
Mesmo vestido de avó

(Trovante)

Dias conturbados, estes.
Dias de tempestade.
Algo vai mal no coração do império.
Falo, claro, dos recentes desenvolvimentos da crise do sistema financeiro norte-americano.
É um tema que não me seduz particularmente.
Que não abordaria, não fosse o carácter excepcional da recente operação de resgate da AIG.
Que não altera em nada a minha antiga convicção de que caminhamos para uma crise.
A minha convicção de que o sistema capitalista caminha a passos largos para uma crise sem precedentes.
Sabia-o antes. Não precisei de mal explicadas falências, nem de atabalhoados resgates para o confirmar.
É inevitável, e é inerente ao próprio sistema.
Por muitos floreados que se inventem, o capitalismo visa apenas a maximização do lucro.
Não procura equilíbrios. Vive precisamente do desequilíbrio. Da exploração.
Aplicando esta lógica a um sistema de recursos limitados, a consequência inevitável será a exaustão, o desastre.
Não existe, nem pode existir capitalismo de rosto humano.
Não existe, nem pode existir, controlo eficaz sobre um sistema desta natureza.
É contra-natura.
É na sua essência um sistema autofágico. que se consumirá, inevitavelmente.
Quando?
Dependerá essencialmente da capacidade adaptação que demonstrar face a situações de crise, mais ou menos previstas.
Não é de hoje, a adopção pelo sistema capitalista de medidas tipicamente socialistas, como forma de acalmar tensões sociais e de ultrapassar crises.
Já o vimos antes. Durante todo o Século XX foi assim.
Surpreendeu-me, no entanto, ver a conservadora administração Norte-Americana lançar mão de uma das mais odiadas ferramentas socialistas: A Nacionalização.
Esse pecado capital, essa abominação de natureza, esse atentado contra a propriedade privada, supremo e inalienável direito capitalista.
Durante dias a imprensa chamou-lhe operação de salvamento, injecção de capital, e outros eufemismos.
Compreende-se.
Nacionalização é típica do louco Chavez. Não de Bush.
Mas, por muitas voltas que tentemos dar, quando o estado injecta dinheiro numa empresa, recebendo em troca 80% desta, do que se trata é de uma nacionalização.
E, este recurso desesperado a tão drástica medida, revela com clareza cristalina a profundidade da crise instalada.
Será ultrapassada? Creio que sim.
Com sacrifícios para os suspeitos do costume, mas sim, será ultrapassada.
Esta e as seguintes, que virão.
Resta saber quantas mais…


Pedro Rui



domingo, 21 de setembro de 2008

Há dias assim...

Há dias assim. Reveladores.
Claros como a água.
Em que se revela, numa só frase, o que esteve escondido durante anos.
E há frases traiçoeiras.
Frases que encerram em si mais do que dizem.
Quando o Ministro da Economia manifestou o seu desejo de que o preço dos combustíveis descesse rapidamente, quis dizer mais do que na realidade podia.
Quis pressionar o mercado, essa entidade sacrossanta, esse regulador das relações capitalistas.
Mas, como seria de esperar, o "mercado" não se comoveu com tão sincero como despropositado apelo.
E respondeu, na voz de um presidente de uma qualquer obscura associação do sector, com uma agressiva e quase humilhante declaração, compreendendo carinhosamente os desejos do Cidadão Manuel Pinho, mas classificando de icompetente e ignorante o Ministro Manuel Pinho.
Foi uma cabal demonstração da correlação de poder que vigora hoje, tempo de globalização em que o liberalismo é apresentado como a única solução viável. Viável para quem, é questão para outra conversa.
E tais declarações só podem ser surpresa para quem andou alheado da vida pública Portuguesa nos últimos 20 anos.
Esses 20 anos em que governos sucessivos, uns rosa outros laranja, mas todos cinzentos, adoptaram o lema
"menos estado, melhor estado".
Em que, em nome da redução do deficit, se entregaram ao sector privado, tudo que era lucrativo no sector público. GALP incluída. Em troca de receitas extraordinárias que nos permitiram a efémera glória de cumprir os critérios de convergência da União Europeia.
Em que se satisfez a voracidade de novos e velhos capitalistas.
Com que moral querem agora que o sector privado abdique dos lucros, que são o seu objectivo último?
Nisso dou razão ao representante do Cartel. Nas petrolíferas mandam os accionistas.
Por muito que o público anseie pela baixa de preços, ela só ocorrerá quando estas assim o entenderem.
Não quando Manuel Pinho, Cidadão ou Ministro, o deseje.

Mas, este infeliz bate-boca, trouxe à memória mais um revelador episódio.
Revelador do despudor com que, em nome do bem do consumidor, se deu uma fatal machadada na única ferramenta que poderia poupar a Manuel Pinho o ralhete que ouviu. E aos Portugueses uns bons milhares de Euros.
Falo, claro, na abolição do preço máximo de venda dos combustíveis pelo Governo.
Refiro-me à pseudo-liberalização do mercado das gasolinas, anunciada por Durão Barroso como um grande passo para os consumidores, os grandes beneficiados com este estímulo à concorrência.
Disse pseudo-liberalização porque na realidade, o mercado já era suficientemente liberalizado, sendo o preço livre, mas com um tecto máximo definido pelo Governo.
Confesso que nunca entendi como é que o facto de haver um preço máximo podia inibir a concorrência...
O resultado está à vista. E vê-se no bolso de todos.
Era óbvio então, como é óbvio hoje que o mercado não funciona, em sectores essenciais em que o grande parte do consumo é uma necessidade e não uma escolha.
Ainda por cima quando os intervenientes são poucos.
Que não precisam sequer de se cartelizar para funcionar como um bloco.
Era óbvio então, como é óbvio hoje que é imperativo que exista nas mãos do estado uma ferramente forte de regulação. A definição do preço máximo parece-me a mais lógica.
Durão Barroso aboliu-o, e não me lembro de vozes discordantes, nem nos cinzentões do PS, nem na imprensa, subserviente e alinhada com os interesses dominantes.
Ouço hoje vozes revoltadas mas pouco esclarecidas. Vozes dos que calaram na altura.
E que se calarão mais uma vez, quando as gasolineiras baixarem 1 ou 2 cêntimos no preço.
Comprando uma vez mais o direito de se preocuparem somente com o seu lucro.

Pedro Rui